Quem sabe dorminremos
..........Acordei cedo. Antes de tocar o relógio. A noite fora difícil.
..........Atravessei a rua. Peguei a esquina errada. Acabei dando uma volta enorme até chegar no ponto de ônibus. Mais 40 minutos de espera.
..........Sentei no fundo porque foi mais fácil: o motorista arrancou, fui aos tropeços jogado para trás. Sentei e olhei pela janela.
..........Numa das paradas, entrou uma loira. Mulher de uns dezoito, vinte anos, alta. Cabelo cortado logo abaixo dos ombros, liso, com uma franja dessas feitas em casa, mal alinhada. Bem coisa de européia. E tinha mesmo cara de sueca.
..........Antes de pagar a passagem já tinha me avistado. Cruzamos olhares.
..........No fundo, os últimos bancos estavam todos livres. Teve o cuidado de deixar um entre nós. Seria difícil, porém mais fácil.
..........Seus olhos azuis chamavam muita atenção naquele clima nublado de uma Curitiba cinzenta. Um azul que mesmo de perfil preenchia seu rosto sardentinho.
..........Olhei pela janela para ganhar tempo. Já sei de antemão que não vai dar em nada. Mas sempre pode acontecer.
..........Ela tirou um caderno quadriculado, folheou algumas páginas preenchidas numa letra muito feia e, depois de reler as últimas linhas, continuou sua vida: rabiscava aos solavancos o que eu imaginava ser seu diário de viagem nessa terra estrangeira. Sem dúvida, não era daqui. Escrevia em inglês e nem parava quando a freiada fazia seu ‘a’ rodear metade do parágrafo.
..........Aquilo me deu uma idéia. Na verdade, a idéia que tive foi para ela, mas tive que pensá-la eu mesmo. Peguei um papel no bolso de trás e escrevi:
..........um dia,
....................quem sabe,
dormiremos...
..........O telefone foi no verso.
..........Mais uma olhada pela janela, dessa vez para ver se faltava muito para o meu ponto, coisa que nem prestei atenção, e me levantei. Apertei a parada enquanto espiava pelo canto do olho. Coisa rápida. Escrevia. Mas percebi que me olhava de vez em quando.
..........Chegou a parada.
..........Olhei bem pra ela e entreguei o papel.
..........Na descida, quase bati a cabeça na porta. E fui andando para o lado errado, pensando às avessas, rindo da piada que havia sido. Parei de andar quando concluí que era hora de esquecer. ..........Talvez ela nem tivesse conseguido pegar o recado.
..........Percebi que estava muito longe. Longe do escritório chato, longe de dormir bem, longe de trepar distraído – a cidade é fechada demais, o trabalho é a única relação possível.
..........Enfiei a mão no bolso à procura do telefone. Estava ali, imóvel e quente. Puxei-o para olhar as horas. Queria mesmo é que tocasse. Não tocava. Desbloqueei o aparelho. Também não adiantou. Foda-se. Já tinha virado piada de mal gosto. Algum dia... isso era o mesmo que nunca.
..........Voltei-me para onde deveria ir, em direção ao ponto de ônibus, para o escritório.
..........Preferia que tivesse tocado o telefone: ela estava ali!
..........Me olhou profundamente e eu acabei mergulhando nela sem querer. A um passo de mim ela continuava em silêncio. De mim, é melhor não tentar uma descrição.
..........Mas dela, agora podia ver melhor. Era meio vesga, coisa leve. Bastante branca, rosto de menina.
10 de outubro de 2008
(Esse texto foi interrompido aí. Seguno uma crítica especializada ele deve ficar do jeito que está, mas havia sido programado mais coisa. Alguém acha que o texto deve continuar?)