segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Pedaço 03 - Passando a noite

Caminho olhando para o chão porque a paisagem demora muito para mudar. Agora, de noite, são raras as pessoas que andam pelas ruas. Quando aparece alguém, ouço de longe. Nem preciso erguer o rosto.

Os carros também não passam. Pois nessa região não há nada para fazer. Duas ruas abaixo, há uns velhos puteiros de putas muito feias. Quando nos acostumamos com as mulheres das praias ou da internet o universo feminino real escorre feito esgoto: pêlos, espinhas, sebo e menstruação. Para mim, isso ainda tem certa atração. As mulheres reais pelo menos reagem e isso cria um clima de imprevisto estimulante. Por mais que não me dê bem na maior parte das vezes, acho que é isso que me leva a tentar novamente.

Uma coisa é certa: aquelas putas são mais que brochantes. Não apostaria minha cabeça com o diabo nem por quinze dinheiros naqueles quartos a duas ruas.

O silêncio tem a capacidade de transformar todas as coisas. Viro uma esquina. ... Caminho. ... Sente-se o relevo, os cheiros. É possível fluir com as ruas.

Passa um carro. A visão volta a funcionar. A cabeça faz mil cálculos.

Numa esquina, descendo a rua, lá no fundo, a três quadras, está um travesti esperando. Sento no meio fio e fico observando. Isso de ficar sentando à meia noite no centro da cidade não é uma coisa que se espera de uma pessoa. Mas não há pessoas para esperarem algo de mim. Sento e observo.

 Dez minutos já e nada.

 Entre eu e o travesti há um guardador de carros, no meio da segunda quadra. Sentado em uma cadeira de praia, em frente a uma porta, ele fica só olhando a falta de movimento. Quando aparece alguém, aponta para trás de si com o dedão, mas é para a porta ao lado. E as pessoas entram. Apenas distingui que havia um neon acima da entrada.

Levanto e encosto no poste da esquina. A mão no bolso de trás conta - vinte e cinco mangos. Tem umas moedas perdidas também. Dependendo do valor da entrada ainda é possível tomar uns gorós. Mas pelo jeito que os bares daqui são, terei que dar o cano no madrugadão das três.

Desço a ladeira com as mãos enfiadas nos bolsos. Do outro lado da rua vai um grupo de 3 pessoas. Calça social justa na canela, camisa com listras largas, cabelo tipo capacete, um lenço branco, cigarros conectados ao corpo.

O neon dizia Blues Velvet.

Achei estranho esse lance do neon. Nunca mais tinha visto gente trabalhar com isso. Nas rodovias ainda passamos por umas whiskerias assim. E, para falar a verdade, com esse cara aqui na entrada, numa ruela estreita da velha cidade, é bem provável que aqui vivesse um puteiro.

Bonito. Para um bar alternativo nada melhor que um clima punk-anos80-novaiorquino. (Uma falsificação barata entre aspas. Ou uma réplica. As pessoas se sentem melhor em lugares que não são os da sua realidade. Há quem diga que as utopias não vigoram mais...).

Depois do dedão para a porta, subi um lance de escada e no segundo andar uma banda de jazz fazia sua pausa. A fumaça criava uma camada que embaçava a visão.

 Com aquela pocilga cheia, eu me perguntei:

 - E o que estou fazendo aqui com minhas últimas moedas? Preciso de um lugar para dormir. Pelo menos essa noite.

2 comentários:

R. disse...

Gosto da maneira seca como você descreve as coisas, desde o tipo de neon aos pensamentos sobre mulheres reais e modeladas.Lembra o Miller, com um pouco menos de fluidos corporais.

(E meus óculos são duros de trocar. Tentei algumas vezes, mas não deu muito certo.)

Anônimo disse...

o texto precisa ser trabalhado um pouco para valorizar o ritmo que cria clima do texto. tem uma passagem que dói: "Quando nos acostumamos com as mulheres das praias ou da internet o universo feminino real escorre feito esgoto: pêlos, espinhas, sebo e MENSTRUAÇÃO. Para mim, isso ainda tem certa ATRAÇÃO."

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