terça-feira, 26 de abril de 2011

"'Pixo' questiona limites que separam arte e política", diz curador da Bienal de SP

 Link da Folha
15/04/2010 - 07h00

FERNANDA MENA
da Reportagem Local

Acusados de vandalismo e terrorismo, os líderes do grupo que invadiu e pichou o andar vazio da Bienal de São Paulo em 2008 vão entrar na 29ª edição, em setembro, da mostra com credencial de artista.

A participação foi confirmada à Folha pela curadoria, que descreveu os pichadores como "artistas brilhantes", apesar de "tratados como marginais".

Com isso, a Bienal entra num fogo cruzado daqueles que tomaram partido de invasores ou de invadidos, e que agora polemizam sobre a iniciativa. É demagogia? Legitima uma ação destrutiva? Coopta uma vanguarda transgressora?

Para o curador Moacir dos Anjos, a aposta não é em respostas fáceis, mas justamente na elaboração de questões.

Leia, a seguir, íntegra da entrevista concedida pelo curador-geral da mostra à Folha.

Folha - Por que incluir os pichadores da 28ª Bienal na 29ª edição do evento?

Moacir dos Anjos - Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que nosso intuito não é incluir 'os pichadores da 28ª edição'. Não se trata de um pedido de desculpas ou de um confronto com a edição anterior do evento. O que realmente queremos incluir na presente edição da Bienal é a pixação, ou simplesmente o pixo, com 'x' mesmo, grafia usada por seus praticantes para diferenciar o que fazem hoje em São Paulo das pichações político-partidárias, religiosas, musicais, ou mesmo ligadas à propaganda que há vários anos enchem os muros e paredes da cidade, a despeito do quão 'limpa' ela queira apresentar-se. E queremos incluí-lo porque achamos que o pixo borra e questiona os limites usuais que separam o que é arte e o que é política. E essa é uma questão que interessa muito ao projeto curatorial da 29ª Bienal.

Lembro que política é aqui entendida não como espaço de apaziguamento de diferenças, mas justamente o contrário. Ou seja, como o espaço formado pelos atos, gestos, falas ou movimentos que abrem fissuras nas convenções e nos consensos que organizam a vida comum. Ou seja, como bem coloca o filósofo francês Jacques Rancière, política entendida como esfera do "desentendimento".

Essa é uma questão que, evidentemente, envolve uma série de dificuldades para que essa aproximação não se dê somente na superfície e, portanto, escamoteando as diferenças existentes, situação que não interessaria nem a nós nem aos pixadores. A nossa aposta é em descobrir formas novas de tratar do assunto com integridade de ambas as partes, sem que instituição e pixadores cedam completamente ao universo da outra.

Folha - Como você avalia o episódio da invasão da 28ª Bienal por pichadores e a reação da instituição?

Dos Anjos - A invasão foi, sem dúvida, uma provocação e um protesto frente a uma situação de exclusão a que aqueles que a protagonizaram (os pixadores) são submetidos em seu dia-a-dia em várias instâncias da vida comum na cidade de São Paulo e, no caso particular, do meio institucional da arte. Não estou com isso dizendo que a endosso, mas que é assim que a entendo.

A resposta da instituição naquele momento foi, a meu ver, inadequada, pois reduziu o incidente, seja pelas ações que tomou seja pelas que deixou de tomar, a um caso policial. Se é verdade que houve infração de regras e de leis por parte dos pixadores, não existiu o esforço necessário, por parte de uma das maiores e mais importantes instituições culturais do país, de entender as razões do ocorrido. Acho que essa postura não faz jus ao importante protagonismo público que a Bienal pode exercer na cidade e no Brasil, gerando conhecimento novo sobre o assunto.

Folha - O convite/a participação do picho na Bienal é um atestado, portanto, de que a 28ª Bienal errou? Por quê?

Dos Anjos - Não é intenção da curadoria, em absoluto, incluir o pixo para 'reparar' um suposto erro cometido pela Bienal no passado. Como também não é intenção da curadoria 'cooptar' o pixo para evitar novos conflitos que poderiam eventualmente se repetir. Entendemos que a situação é outra, e nosso objetivo é atuar, nesse novo contexto, da forma que achamos mais coerente tanto com o projeto curatorial da mostra quanto com a visão que temos do lugar do pixo da teia cultural da cidade.

Folha - Isso não é demagogia?

Dos Anjos - Seria demagogia se estivéssemos simplesmente convidando pixadores da mesma forma que tantos outros artistas estão sendo convidados. Mas nós sabemos que essa igualdade não existe, e eles evidentemente também sabem. O que nos interessa é justamente tentar entender essas diferenças, e os limites e as possibilidades dessa aproximação. E é isso que também acho que interessa aos pixadores. Ninguém está tentando escamotear nada. Tudo está sendo feito às claras. A aposta é na explicitação de questões, não no oferecimento de respostas fáceis. E como as questões precisam ser melhor formuladas tanto por nós, pertencentes ao chamado 'campo da arte', quanto pelos pixadores, nosso empenho é demonstrar que a Bienal de São Paulo pode ser plataforma privilegiada para a formulação dessas questões. Se conseguirmos ao menos isso, acho que já teremos dado uma contribuição relevante para o início de um debate mais amplo e consequente sobre o assunto.

Folha - Como se deu a aproximação entre pichadores e a atual curadoria?

Dos Anjos - Os eventos de 2008 tiveram o mérito de fazer com que muitas pessoas e instituições se empenhassem na tentativa de entender o que estava implicado no episódio. O Ministério da Cultura, por exemplo, buscou estabelecer um diálogo com o grupo de pixadores envolvidos, empenhando-se em tentar entender as complexas razões que levaram ao surgimento dessa gigantesca cena do pixo em São Paulo. Acho que esse movimento foi importante na preparação para uma conversa menos tolhida por preconceitos mútuos entre a Bienal e os pixadores.

O anúncio de que a 29ª Bienal teria como foco a questão da relação entre arte e política foi o outro elemento-chave que levou os pixadores a fazerem o primeiro contato buscando estabelecer uma conversa, posto que entenderam que haveria ali uma possibilidade de dar visibilidade a questões que foram (e ainda são) muito mal entendidas pela maioria da população. O papel da curadoria, nesse processo, é justamente propor estratégias de inserção do pixo na exposição que, contudo, não o "domestiquem", tornando-o algo passível de fácil inserção em um mercado sedento por novidades para serem vendidas.

Folha - Como essa aproximação foi vista pela Fundação Bienal? Houve algum tipo de objeção inicial? Caso tenha havido, como foi contornada?

Dos Anjos - A direção da Fundação Bienal não interfere nas escolhas e nas estratégias da curadoria da mostra, agindo sempre de modo respeitoso e depositando confiança nos curadores convidados para a realização do evento. Nós curadores, por outro lado, temos a medida de nossa responsabilidade quando propomos questões passíveis de gerarem desconforto ou polêmica. Temos absoluta certeza, contudo, que é exatamente esse o papel de uma Bienal de arte: criar fissuras nos entendimentos estáveis do que é ou do que pode ser arte. Independentemente do foco temático da presente edição, creio que a Bienal de São Paulo tem a obrigação de, nesse sentido amplo, ser sempre política.

Folha - De que maneira os pichadores se encaixam no projeto curatorial de arte e política?

Dos Anjos - O pixo é uma manifestação visual que traz, embutida nas práticas dos pixadores e nas imagens que eles criam sobre os muros e edifícios da cidade, uma visão de mundo que simplesmente não cabe nos acordos que regem e limitam a vida comum na cidade de São Paulo. E apesar disso o pixo está aí, cobrindo toda superfície de parede disponível, forçando sua passagem em um país cujas elites ainda preferem ignorar as graves fraturas sociais que existem. Dando visibilidade a algo que de outro modo não seria visto. E falando de algo que, não fosse justamente pela grafia aparentemente cifrada que os pixadores usam, dificilmente seria dito. Nesse sentido, pixo é política. E nesse sentido, é arte também.

Folha - Picho, então, é arte?

Dos Anjos - Nesse sentido em que falei, sim. Na verdade, a questão a se fazer é outra, que poderia ser formulada nos seguintes termos: Se o pixo é exposto numa galeria ou numa Bienal, permanece sendo arte? É com essa aparente contradição que teremos que lidar na 29ª Bienal. Pois se o que faz o pixo ser arte é justamente o fato dele desconcertar nossos sentidos e nos fazer admitir, mesmo quando estamos no conforto de nossos carros ou da janela de um apartamento alto, que existem outros modos de entender e de inventar o mundo, o que acontece se o pixo é trazido para o ambiente controlado, conhecido e decodificado do chamado 'campo' da arte? Ele mantém a sua potência ou se torna mera ilustração ou lembrança de si mesma? É esse desafio que curadores e pixadores tem que enfrentar juntos, de modo que ultrapassem duas situações simétricas e igualmente indesejadas: por um lado, a simples rejeição ao que causa desconforto; por outro, o desejo de cooptar o diferente para torná-lo igual a nós mesmos.

Folha - Mas picho também não tem um aspecto de vandalismo?


Dos Anjos - De uma perspectiva meramente legalista, a resposta obviamente é sim. Porém, essa é uma maneira de ver a questão que mais esconde do que revela. Afinal, o grafite também ocupa espaços na cidade que não são propriedade dos grafiteiros, e nem por isso estes são criminalizados de modo tão inequívoco como os pixadores. Na verdade, como bem sabemos, muitos grafiteiros são hoje considerados artistas, tendo seus trabalhos expostos em museus e vendidos em galerias de arte. O que produz essa diferença de percepção? Arriscaria dizer que é a opacidade do pixo em relação à transparência do grafite. Ou seja, que é o incômodo causado por algo que não se deixa apreender por códigos conhecidos, quando comparado ao conforto sentido quando se depara com uma imagem reconhecível e produzida por uma prática autorizada, como é hoje a dos grafiteiros.

Folha - A participação reforça a passagem, cada vez mais comum, da arte de rua para as galerias? Quais os prós e contras dessa passagem?

Dos Anjos - Se o resultado da participação do pixo na Bienal de São Paulo for reforçar essa passagem "da rua para as galerias", teremos fracassado inteiramente em nosso intento. Não é isso que queremos, ainda que fazer essa travessia possa melhorar materialmente a vida dos pixadores que a façam. Mas então o que se fará não será mais pixo, mas apenas uma representação gráfica do pixo. Aqui, como em tudo na vida, é preciso fazer escolhas. E escolhas têm consequências. Por isso que não queremos impor aos pixadores formas de participação do pixo na Bienal. Queremos construir juntos essas formas de participação. Mas de antemão já sabemos, curadores e pixadores, que trazer o pixo como mera expressão gráfica que se vale de um suporte bidimensional para dentro do prédio da Bienal não interessa, não resolve coisa alguma. Esse seria o caminho mais curto para destituir o pixo de sua força transgressora e de sua originalidade. Interessa-nos mais descobrir formas de compreender e de ativar, a partir da Bienal, os significados do pixo na cidade de São Paulo. Para tanto pretendemos fazer uso de estratégias diversas de documentação (fotografias, vídeos, coleções de tags) e de discussão. Estratégias que não se confundam com o pixo propriamente dito, já que esse só existe como tal nas ruas, mas que evoquem, desde o interior do mundo da arte, o fato de que nem tudo que é arte a Bienal é capaz de abrigar ou de entender plenamente.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Pedalada Ctba - Guaraqueçaba (fev/11)

Esta pedalada começou meio enviesada. Havíamos combinado de sair no sábado pela manhã, mas acordamos tarde e parte da bagagem não estava pronta. Quando terminamos de organizar as coisas já era aí pelo meio dia, não daria tempo de curtir a descida da Graciosa. Resolvemos, então, sair domingo cedo.


Por incrível que pareça, os 40 quilômetros de Curitiba até a entrada para Morretes, pela BR-116, passaram bem rápido e no meio do caminho passou um caminhão muito perfumado. Fiquei um tempão tentando descobrir de que era aquele cheiro. O pessoal anda muito rápido na estrada, não deu nem para ver a carroceria. Quando senti que havia algo mais que fumaça no ar, a carga já ia pelo menos a uns quinhentos metros. Tendo refletido sobre velocidade, fumaça e pedal, descobri: era abacaxi! Fiquei rindo e sonhando com um bem gelado naquele asfalto de fritar ovo.

Como de costume, paramos no mirante para almoçar: caldo de cana, água da côco, bolacha integral de aveia com cacau. Aí apareceu a primeira falha quando recusei o copo plástico do caldero: esquecemos nossas canecas!

A descida termina numa região com várias casinhas vendendo bugiganga e comida tradicionais, sem contar locais para "esportes" aquáticos como boia-cross e o famoso "segura-na-corda".


Sabíamos que ali em Porto de Cima tinha um camping na beira da estrada. Era umas quatro da tarde e era preciso ter em mente pelo menos um lugar certo para ficar. (Em Morretes, ficamos da outra vez num camping que é bom, mas muito longe.) Paramos e perguntamos o preço. Barato. "E esse barulho todo?" Havia vários carros com som alto. "Isso já sai. O pessoal vai embora logo que anoitecer. Aí só fica a gente aqui e o bar". Hum, sertanejo agora, sabe-se lá o quê depois. "Muito obrigado. Tchau".

Entre Porto de Cima e Morretes tem uma longa e escaldante planície, provavelmente um mangue aterrado. Em determinado momento, passamos pelo Corpo de Bombeiros. "Sabes que já me disseram que dá para ficar aí? Que tal tentarmos?".

O sargento Gaspar nos atendeu e convidou para tomar um café: queria conversar, saber quem éramos antes de nos ceder um lugar. Sob o ruído da sempre presente televisão (hoje parece que para haver vida humana é preciso esse troço infernal), o sargento nos contou várias histórias sobre seu passado em Tagaçaba e Serra Negra, por onde passaríamos na ida para Guaraqueçaba.

Lá pelas cinco e meia perguntei se poderíamos ficar ali ou se teríamos que ir para outro lado pois começava a escurecer. "Sim, claro, vamos ali no gramado ver onde vocês querem armar a barraca. Só que amanhã bem cedo vocês têm que ir embora". Tudo bem.


Às sete em ponto nos despedimos dos soldados e deixamos um abraço ao sargento, pois havia saído para comprar pão em Morretes.

A segunda falha apareceu depois dos primeiros quilômetros do segundo dia: a Luísa esqueceu o óculos dentro da barraca. Olhei para meu bagageiro e pensei "é, tá bem compactado para reduzir o atrito com o ar". Na Cidade do Barreado abrimos a barraca no meio da praça ao lado do rio e juntamos os pedaços. "Acho que dá para consertar. Ainda tem aquele arame do pão?" Mas não deu. O óculos ficava se mexendo demais no rosto, uma lente para cada lado.

Recarregamos a comida e pegamos a estrada para Antonina.


O caminho era muito bom e tranquilo. Depois de entrar para Guaraqueçaba, uns 4km antes de Antonina, o movimento reduziu ainda mais. Lá pelas tantas bateu a fome e numa vendinha onde compramos quatro ovos a vendedora nos disse que havia um lugar muito bom para descansar, onde muita gente ia passar o dia com a família e tal: o Rio do Nunes.

Realmente, o lugar era muito bom, com mesinhas cobertas, churrasqueira, água, banheiro, e o rio. Almoçamos e ficamos nadando. Essa região de mata atlântica é sempre muito quente. Tínhamos que esperar o sol baixar um pouco para poder seguir.


Até aqui a pedalada estava indo bem. O asfalto tinha pouco buraco, havia acostamento em grande parte do percurso, sombra de árvores, etc. Mas, de repente, aparece a temível estrada de terra. Na verdade, se fosse "estrada de chão batido" não teria sido tão ruim. O problema era que os próximos 76km seriam numa estrada de pedras, como um leito de rio seco. Isso reduziu nossa velocidade para em torno de 30k/dia, quase como se estivéssemos indo à pé.


Passado um tempo, sentamos à sombra numa ponte para descansar e comer. A tarde ia pela metade e a todas as pessoas para quem perguntamos quanto faltava até Tagaçaba a resposta era "uns 24km". Desanimador... Ainda mais quando uns diziam: "aí pela frente tem uma serra braba, viu?". Pensei que devíamos parar numa casa e pegar água gelada e frutas. Assim, na primeira estradinha entramos. Era uma associação de apicultores, onde apenas a família do caseiro estava. "Vi vocês agora há pouco, era eu que ia pedalando mais na frente". Ofereceu água gelada. "Conhecem jaca? Esses dias apanhei uma e tava esperando amadurecer um pouco. Talvez já teja no ponto. Sabia que jaca é fruta indiana? Querem provar?". Eu nunca tinha comido e sabia que não gostava. Luísa também não conhecia mas queria sentir o gosto. O troço era horrível. Gosmento, doce e muito forte. Lambi os dedos e dá-lhe água.

Faltava umas três horas para anoitecer. Será que era melhor ficar ali? Não, Tagaçaba fica só 24km mais pra frente. Dá tempo e sobra. Agradeçemos e seguimos.

O pior foi que não sobrou tempo, nem água, nem energia. O céu já havia se lançado no lusco-fusco quando saímos da estrada principal e descemos para uma casa. Os cachorros latiram lá de longe e vieram espantando uns pássaros enormes e pretos, que mesmo de dia eu não saberia reconhecer: o jacu.

"Boa noite, senhora. Estamos indo para Tagaçaba. Falta muito ainda?", "Pelo menos uns 20km", "Virge maria, acho que não vai dar. Poderíamos passar a noite aqui? Temos barraca, comida, tudo", "Olha, eu não conheço vocês mas vou dar um voto de confiança. Tem esse espaço aí pro lado da casa". O marido chegou em seguida e ela falou que ficaríamos. Ele concordou. Um tempo depois já estavamos usando o chuveiro deles e tudo.



"Nós vimos vocês lá no trevo de Antonina, hoje cedo", disse simpática a dona Irene. E começaram a conversar sem parar. Queríamos comer e dormir, mas não achávamos nenhuma brecha. Parecia que não falavam com gente há muito tempo, então não podiam perder a oportunidade. Em dado momento, conseguimos escapar e preparamos nosso jantar tradicional: macarrão de sêmola, tomate seco comprado a granel, sardinhas enlatadas ao molho de tomate e água. De sobremesa tinha chocolate de soja e paçoca.

De noite começou a choviscar. Tive que colocar a lona por cima, o que aumentou terrivelmente o calor. Na manhã seguinte, com um sol muito bonito, colocamos os cochonetes para ventilar e fomos convidados para tomar café juntos. Com a televisão ligada, ouvimos histórias sobre a vida do casal, como foram parar ali, em Potinga, já que eram de Curitiba, o trabalho de confeiteira de Irene, a lida na terra de Loepoldo, os filhos caminhoneiro e administrador que trabalhavam muito, os vizinhos que eram todos preguiçosos e ladrões, os políticos que não ajudavam, e por aí vai.


A estrada exalava vapor pela manhã e o sol já estava fritando. Chegamos em Tagaçaba pelo meio dia com muito calor e uma estrada poeirenta. A vila possui uma pequena infraestrutura turística de pousadas e restaurantes. Pelo que ouvimos falar, Tagaçaba é onde o pessoal pára quando vai para Guaraqueçaba. E nós decidimos passar o dia ali, descansando.

Para tanto, primeiramente fomos largar as coisas. Tínhamos duas referências: uma de um sujeito chamado Duka, que conhecemos no Rio do Nunes. Ele indicou a casa de um amigo, dizendo que não tinha erro. A outra, foi de dona Irene. "Assim que chegarem em Tagaçaba, passando a ponte, na primeira subida à esquerda: ali mora a Zuleide, que cuida da paróquia. É só bater e dizer que foi eu quem mandou."



E foi isso mesmo. Ficamos no galpão de festas da igreja católica, que ficava numa subida e de lá podíamos ver todo o vale. Disseram que sempre aparecia gente viajando e que deixavam o pessoal acampar ali.



Passamos o dia brincando no rio, lendo, comendo, descansando. De noite, o marido da Zuleide nos convidou para uma sopa, porém já estávamos comendo a nossa janta. Descemos mais tarde para conversar um pouco.


No dia seguinte, com o céu sempre nublado, passamos pela vila de Serra Negra do sargento Gaspar e depois de muita subida chegamos a um mirante quase em ruínas. Dali, tínhamos a visão de toda a planície litorânea até Guaraqueçaba e o relevo prometia ser mais ameno.







O bar do seu Gilson ficava na esquina que pegava para a Reserva do Salto Morato. Essa seria a nossa última parada antes de Guaraqueçaba. Tomamos um refri gelado e seguimos mais 4km na pior estrada de todos os tempos. Ficamos no camping deserto e saímos para conhecer o salto antes que escurecesse. Chegamos à cachoeira depois de 1,5km de trilha. Só podíamos ficar sentados, olhando em silêncio.


No meio da trilha havia uma piscina natural, formada na curva do rio. Água gelada? Um pouquinho.



De volta ao camping, estávamos com um probleminha. Nossa comida estava dividida entre a janta de hoje e o café da manhã do dia seguinte. Era de tarde e a fome crescia. Perguntamos sobre a lanchonete que havia na reserva: "Fechou. Não vem tanta gente quanto eles imaginavam". Pensamos no bar do seu Gilson, na estrada ruim, no cansaso. Mas eis que surge o encarregado da reserva: "Vieram de Curitiba? Eu também gosto de pedalar e isso e aquilo". Era um cara de uns trinta anos que gostava de esportes no meio da natureza. "Olha, estou saindo para voltar só semana que vem. Tenho umas coisas na geladeira do refeitório que talvez vocês queiram. Vamos lá ver?". Pão, queijo, maçã e suco. Excelente! Ficamos tão contentes que a horda de mosquitos que nos atacava quase foi ignorada (mas era impossível).

No final da tarde, chegou um cara de moto sozinho. Roberto Carlos, soldador, trinta e poucos anos. Gostava de conversar e contou histórias sobre trilhas e passeios, coisa que fazia quando mais magro. Deu várias dicas de lugares para visitarmos nos arredores de Curitiba. Uma rara pessoa que, sendo trabalhadora comum e mesmo sozinha, sai no feriado para acampar e conhecer belezas naturais.






O caminho até Guaraqueçaba foi tranquilo. Havia muitas fontes de água cristalina que cruzavam a estrada, mas não paramos com medo dos mosquitos. A proximidade com a cidade se anunciava pelos morros desmatados e a areia branca no chão. Quando chegamos na estrada de paralelepípedo tive uma sensação ruim. Aquele era um lugar desolado, abandonado, onde tudo era feio e largado para apodrecer. Passamos por loteamentos onde as casa mais pareciam de uma periferia. Num município de 8,5 mil habitantes isso parece incabível! Entrando um pouco mais, passamos por casas de veraneio (?!) e adiante, depois de uma subida, fica o centro histórico.


Fomos direto comprar a passagem de volta por barco e buscar um lugar para comer. A passagem custava R$17 mais 15 da bicicleta. "Que absurdo! Como é que pode?! Acham que isso aqui é viagem pra lua? Turismo virou sinônimo de ladroagem ou o quê?" Depois disso a moça fez a bicicleta por 10, mas muito a contra gosto.


Sinceramente, Guaraqueçaba é apenas um lugar inóspito que, como boa parte do turismo litorâneo brasileiro, não oferece serviços de qualidade e cobra caro. Não tenho vontade de voltar lá e também não recomendo a ninguém (a não ser que vá de bicicleta, pois aí a cidade é apenas um pontinho no trajeto).

Tivemos muita sorte durante a viagem: não choveu nenhuma vez enquanto pedalávamos, conseguimos pouso no meio do nada com a dona Irene, nos ofereceram comida quando precisamos, nenhum pneu furou mesmo com a estrada daquele jeito e não passamos mal por causa de água ou comida. Os mosquitos atacaram sem piedade, por cima da roupa e ignorando qualquer repelente, o que tornou as noites um pouco difíceis. Mais uma vez, não estávamos preparados para chuva, que caso nos pegasse seria um desastre.

Foi a viagem mais difícil até agora, porém a mais aventureira.