quarta-feira, 26 de maio de 2010

Angústia

Todos os nomes, José Saramago

Uma angústia súbita apertou-lhe a garganta enquanto a razão afligida tentava resistir, queria que ele mostrasse indiferença, que dissesse, Melhor assim, menos trabalho me dará, mas a angústia não desistia, continuava a apertar, a apertar, e agora era ela que estava a perguntar à razão, E que vai ele fazer, se já não pode realizar o que pensou, Fará o que sempre fez, recortará recortes de jornais, fotografias, notícias, entrevistas, como se não tivesse sucedido nada, Coitado, não acredito que consiga, Porquê, A angústia, quando chega, não se vai embora com essa facilidade, Poderá escolher outro verbete e ir à procura dessa pessoa, O acaso não escolhe, propõe, foi o acaso que lhe trouxe a mulher desconhecida, só ao acaso compete ter voto nesta matéria, Não lhe faltam desconhecidos no ficheiro, Mas faltam-lhe os motivos para escolher um deles, e não outro, um deles em particular, e não um qualquer de todos os outros, Não creio que seja uma boa regra de vida deixar-se alguém guiar pelo acaso, Boa regra ou não, conveniente ou não, foi o acaso que lhe pôs nas mãos aquele verbete, E se a mulher for a mesma, Se a mulher for a mesma, então o acaso foi esse, Sem outras consequências, Quem somos nós para falar de consequências, se da fila interminável delas que incessantemente vêm caminhando na nossa direcção apenas podemos ver a primeira, Significa isso que algo pode acontecer ainda, Algo, não, tudo, Não compreendo, Só porque vivemos absortos é que não reparamos que o que nos vai acontecendo deixa intacto, em cada momento, o que nos pode acontecer, Quer isso dizer que o que pode acontecer se vai regenerando constantemente, Não só se regenera como se multiplica, basta que comparemos dois dias seguidos, Nunca pensei que fosse assim, São coisas que só os angustiados conhecem bem.

2 comentários:

Ive Negrini disse...

"Em geral não se diz que uma decisão nos aparece, as pessoas são tão zelosas da sua identidade, por vaga que seja, e da sua autoridade, por pouca que tenham, que preferem dar-nos a entender que reflectiram antes de dar o último passo, que ponderaram os prós e os contras, que sopesaram as possibilidades e as alternativas, e que, ao cabo de um intenso trabalho mental, tomaram finalmente a decisão. Há que dizer que estas coisas nunca se passaram assim. (...) Em rigor, não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós. A prova encontramo-la em que, levando a vida a executar sucessivamente os mais diversos actos, não fazemos preceder cada um deles de um período de reflexão, de avaliação, de cálculo, ao fim do qual, e só então, é que nos declararíamos em condições de decidir se iríamos almoçar, ou comprar o jornal, ou procurar a mulher desconhecida"

Nida Ollem disse...

"não reparamos que o que nos vai acontecendo deixa intacto, em cada momento, o que nos pode acontecer"

essa frase me deixou atônita.