segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Comentário sobre o 12 de Julho de Sartre

Esse texto escrevi para tentar esclarecer o desconhecimento geral de um grupo de estudos sobre a Revolução Francesa. Na época, estávamos estudando como Sartre explica a constituição dos grupos (conceito específico na teoria sartreana).

Como o texto de estudo foi abandonado por ser muito complicado e chato (assim disse a maioria), Sartre foi abandonado e um comentador apareceu em socorro. Aí foi a minha vez de abandonar o barco.

Para explicar as várias fases, não-sequenciais, da formação dos grupos, o filósofo francês usou o exemplo da Revolução Francesa, acompanhando os acontecimentos a partir de dois dias antes da queda da Bastilha (14 de julho de 1789).

Apesar de incompleto, acho que tem valor.


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Apresentação

No segundo livro de a Crítica da Razão Dialética, Sartre passa a nos explicar a formação dos grupos. Ele afirma que “o ajuntamento inerte com sua estrutura de serialidade é o tipo fundamental da sociabilidade” e, por isso, fornece “as condições elementares da possibilidade para seus membros de constituírem um grupo”.

Diferenciando ainda os grupos dos coletivos por, além do objetivo comum, terem um projeto comum que associa a liberdade como “necessidade de dissolver a necessidade” e a reciprocidade como supressão da alteridade e, portanto, da serialidade inerte dos coletivos, passa a apresentar o grupo em fusão. É importante ressaltar que a diferenciação dos agrupamentos sociais não tem um caráter histórico ou de sucessão.

O fator que dá origem ao ajuntamento – e que contém a semente da sua dissolução – é a necessidade, apontada por Sartre, como escassez material que dá origem ao perigo. A transformação do coletivo em grupo só acontecerá se o acontecimento-motor (o perigo) for vivido por todos, “se sua universalidade for objetiva para cada um”. Porém, “não esqueçamos que o objeto comum como unidade fora de si do múltiplo é, antes de tudo, o produtor da unidade serial e que é na base dessa dupla determinação que se constitui a estrutura antidialética do coletivo ou alteridade”.


O assunto-em-si: pouco antes de 14 de julho?

Para explicar a formação do grupo em fusão, Sartre usa o movimento dialético de negação da série exemplificando a situação de Paris (não da França) durante a Revolução, mais precisamente a partir do dia 12 de julho de 1789. Apesar de a argumentação conseguir caminhar apoiando-se apenas nos acontecimentos dessa data em diante – como saber se o exemplo se molda à teoria? –, torna-se imprescindível o entendimento do contexto histórico francês. É isso que farei aqui, tentando esclarecer o que veio antes daquela data não só em Paris como na França*.

A fome, causada pela crise financeira do Estado monárquico com suas guerras e com as despesas da nobreza, que desencadeou uma elevação nos preços de todos os produtos e conseqüente escassez de alimentos, é um ponto pacífico entre os historiados. Vejamos alguns outros fatos mais controversos.

É muito fácil imaginar como verdadeiro que o Terceiro Estado francês não lia muito, como acontece hoje, e que, de fato, seus gostos intelectuais “continuavam ligados ao sobrenatural, ao maravilhoso e ao fantástico” durante o século XVIII. Assim, “a nobreza esclarecida era o único grupo da população capaz de compreender e patrocinar a filosofia das Luzes”. Esse tipo de literatura causava, sem dúvida, interesse entre todos, eram “as novas curiosidades da razão”. Mas, como os temas discutidos em tal filosofia se distanciavam dos problemas concretos, “as pessoas simples permaneceram no todo mais sensíveis à influência da religião católica”. Nas suas paróquias, “a imensa maioria da população francesa, continuava alheia” ao novo pensamento. Tanto nas cidades quanto nos campos, a fé cristã burguesa e popular permanecia intacta. E esses milhares de “fiéis se tornarão ferrenhos adversários” quando se der a Revolução.

A filosofia das Luzes, que se opunha à tradição monárquica pois pregava uma “laicização e racionalização da visão do mundo e da ordem social, questionando todos os privilégios”, circulou, por mais paradoxal que seja, exatamente nesse grupo: na classe dirigente. Durante muito tempo as duas ideologias, a saber: a monárquica e a iluminista, conviveram juntas, pois nesta não havia o matiz revolucionário. “O seu elitismo não favorecia de modo algum a subversão social” e as reformas liberais eram destinadas “a preservar a hierarquia”: a “ideologia era de modernização e não de revolução”.

Houve, porém, revolucionários que se aproveitaram da literatura filosófica, metamorfoseando-lhe o sentido. Eram chamados de “Rousseaus de riachos”. “Esses ‘pobres rabiscadores’, provincianos ávidos que inundavam Paris, haviam sido colocados por Voltaire num nível inferior ao das prostitutas”. Foram eles, como Marat, Brissot e Cara, vindos das “profundezas do submundo intelectual”, que difamaram pesadamente o Ancien Régime e a Igreja através de uma contracultura panfletária, produzindo uma “revolução cultural” alavancada pelo jornalismo revolucionário. Na década de 1780, esses ácidos panfletos “veneravam as perspectivas de um paraíso terrestre” alheio à racionalização e muito disso foi interpretado e digerido segundo a visão mística da população. No entanto, no “público culto” estava se preparando uma radicalização e uma politização devido ao seu “ódio ao despotismo e à aristocracia”, sendo estes intimamente ligados à Igreja: o dauphin era rei pela vontade de Deus.

A crise no governo francês fez com que os dirigentes tentassem uma reforma baseada nas Luzes, mas a “inércia do poder instituído era reforçada pelas condições de seu funcionamento, que repousava inteiramente sobre os favores reais”. “A verdadeira crise da monarquia, longe de se limitar a um problema de equilíbrio orçamentário, provinha de um tipo de administração que obrigava o soberano a se apoiar em fortunas especulativas, elas próprias solapadas, em 1787, pela crise econômica”. A legislação revolucionária buscaria “fazer com que as finanças francesas passassem de um sistema de relações contratuais entre o poder e os homens de negócios para o de uma hierarquia de assalariados”. Por outro lado, a Igreja, possuidora de enorme fortuna territorial, foi se tornando hostil ao governo pois via nas reformas a possibilidade de uma usurpação de seus bens.

Os reformadores da monarquia, como Calonne e Briene, acabaram sendo minados pela suas oposições, leia-se clero e inimigos pessoais, e acabou-se revelando “a todos, a desordem de suas finanças [do rei]” comprometendo-o perante a forte opinião pública. Daí para diante, não houve mais jeito: “sem dinheiro e sem idéias, a velha monarquia perdera a partida”.


notas:
[*] O livro base dessa descrição será “A revolução francesa em questões” de Jacques Sole, por ser um livro relativamente recente (1988) e muito crítico que pretende mostrar “sem preconceito nacional, que o período revolucionário parece menos a instauração gloriosa da nova ordem do que a mais terrível e confusa das guerras civis”. Essa forma é muito diferente da versão que se aprende na escola – e às vezes na universidade –, ou seja, aquela “patrocinada pela Sorbonne”, de uma “história emocionada” onde as Luzes suprimem o Ancien Régime através da burguesia ascendente e a democracia representativa se define como símbolo de igualdade e liberdade política.
[1] Iniciando com Luis XIV, durante seu reinado houve três guerras maiores: a franco-austríaca (1672-68), a da Liga dos Augsburgos ou guerra dos Nove Anos (1688-97) e a de Sucessão Espanhola (1701-1714); e dois conflitos menores: Guerra da Devolução (1667-68) e a Guerra das Reuniões (1683-84), pelos Países Baixos espanhóis. Sob o reinado de Luis XV houve: a guerra de Sucessão da Polônia (1733-35), a guerra da Sucessão da Áustria (1740-48) e a guerra dos Sete Anos (1756-63), tendo, esta última, conseqüências desastrosas para a França: derrota na Alemanha, perda do Canadá e da Índia.
[2] A estabilidade do Ancien Régime havia sido rompida em 1771 quando do golpe de Estado de Maupeou, onde surgiram as idéias de oposição da aristocracia.

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