quinta-feira, 12 de março de 2009

Der rapo.

Se eu conto ninguém acredita:
vi um poema quebrar!
A pedra estava lisa;
era inevitável:
o eu lírico derrapou,
levou as pernas aos ares
e deu a bunda à queda:
crec.

Com um exame expedito
digno de um especialista
assinei o laudo:
solução simples:
é pegar o manual
do sistema internacional
e abrir na página tal.

Com a régua em punho
adverti que seria um pouco tétrico:
aplicaria o sistema métrico.

do-ze-si-la-bas-,a-ul-ti-ma-to-ni-cá
com-a-fer-ra-me-nta-cor-re-ta-é-pra-já

Apertei e ele espanou:
"Oh, chuva que cais. Por que
não escolheste um pingo a menos?
Ou, ao menos, cair em outros terrenos?"

Percebi que não ia bem:
acentuava os verbos
enquanto obstruía pronomes.

Tentei tirar-nos do temporal
mas sua cadeira estava muito mal:
sabia que não agia de má-fé...

Ah, não posso acreditar!
Acabaram de roubar
da entrada do café

o meu guarda-chuva.

terça-feira, 3 de março de 2009

homem revoltado, camus

A pior herança da modernidade foi nos fazer acreditar que nossa liberdade de juri equivale à liberdade de fato.

a GBA


Esboço de um estudo
* * *

p.15: Se não se acredita em nada, se nada faz sentido e se não podemos afirmar nenhum valor, tudo é possível e nada tem importância.

* * *
.

p.16: A conclusão última do raciocínio absurdo é, na verdade, a rejeição do suicídio e a manutenção desse confronto desesperado entre a interrogação humana e o silêncio do mundo.

* * *


p.17: Sem dúvida, houve épocas em que a paixão pela vida era tão forte que também acabava em excessos criminosos. Mas esses excessos eram como o ardor de um gozo terrível, e não essa órdem monótona, instaurada por uma lógica mesquinha, a cujos olhos tudo se iguala.

* * *


p.18: ... mergulhados na solidão, de armas na mão e com um nó na garganta.

* * *


p. 20: Proclamo que não creio em nada e que tudo é absurdo, mas não posso duvidar de minha própria proclamação e tenho de, no mínimo, acreditar em meu protesto. A primeira e única evidência que assim me é dada, no âmbito da experiência absurda, é a revolta.

* * *


p. 32: Em sociedade, o espírito de revolta só é possível em grupos nos quais uma igualdade teórica encobre grandes desigualdades de fato.

domingo, 1 de março de 2009

Um atraso

Um atraso

........Eu não corro demais. Mas quando a estrada está livre e em bom estado porque não encurtar a parte chata? Não concordas comigo, eu sei. Pensas que foi uma tragédia. Isso é o que menos importa. Estais aqui, quiseste ouvir a versão dos médicos, por que não a minha? É claro que não sairás antes que eu termine. Dizem que a minha situação é grave e tem muitos que adoram isso. Jornais principalmente. Mas eu tenho pressa em acabar. Tenho pressa em voltar. Naquela tarde eu garanto que não tinha pressa.
........Costumava viajar de noite. Não, isso, agora, é apenas um contra-tempo. Costumo sair antes do trânsito pesado na cidade e pego a estrada rural. Uma BR. E vou até a vila de minha mãe. São uns trezentos quilômetros ladeando a costa. Não há ninguém que viva naquele deserto. É uma grande planície seca. Dizem que basta colocar uma cerca que é seu. Mas nem assim há gente que queira. É preciso água. Com água se faz então qualquer coisa.
........Naquela semana resolvi viajar mais cedo. Provavelmente uma quinta. Talvez antes, mas é improvável. Saí da cidade tranqüilamente, com o som ligado. Stravinsky. Era bom quebrar a monotonia da estrada com a consagração da primavera. Já ouviste? Isso não importa, mas é boa. Fui a cento e quarenta para não gastar tanto combustível. O sol se punha à minha esquerda. Nenhum carro. Acho que não passou, nem passei ninguém.
........A uns cinqüenta quilômetros da cidade aconteceu. Pode até ter sido um desastre. Como posso julgar agora?
........Devia ser mais ou menos uns sessenta quilômetros, pois os bombeiros chegaram rápido. Eu não tinha pressa, mas eles vieram como sempre. O que eu devia ter feito era ter desacelerado. Apenas tirar o pé do acelerador não serviu.
........Se não me engano, avistei umas dez. Das gordas. Tinha água em algum lugar por ali, só podia.
........Desviei da primeira vaca. Estavam em uma curva, senão as teria visto. Não entendo porque não pensei em frear. Devia ter freado. Só um pouco. Reduzir para cem. De noite todas as vacas são pardas, mas ainda tinha sol. Não freei.
........Os pneus cantaram quando esbarrei na segunda. Na terceira foi em cheio. O pára-choque acertou as pernas e jogou o corpo para cima do capô. O vidro não agüentou e estourou na minha cara. Lembro de muitos cacos de vidro, de eles demorarem para se desgrudarem da película, de uma costela ter furado o pára-brisa. Ouvi os médicos contarem essa parte com muito entusiasmo. Dizem que os bombeiros têm uma versão parecida.
........Mas ainda estou aqui, numa cama. Mas não importa. Quero que acabe de uma vez.
........Quebrei as pernas da vaca e, com a velocidade que ia, sem desacelerar, ela entrou no carro pelo pára-brisa. Recebi a pancada do cinto no peito e depois o corpo da vaca na cabeça. O vidro não era nada. Cortou um pouco o rosto e os braços. Quando bati, instintivamente pisei no freio. Finalmente. O carro parou sabe-se lá onde depois de quebrar uma cerca.
........Poderia ter havido o silêncio e ambos poderíamos ter dormido para sempre. Mas stravisnky iniciava a segunda parte de sua primavera. Lentamente acordei. Lentamente os violinos levitaram minhas dores. Percebi então o que estava acontecendo: havia sangue e um cheiro horrível. Tentei me mexer um pouco. Meus movimentos cresciam com o lento avançar da música. Senti a dor de um braço quebrado. Parecia que minhas pernas estavam bem. Foi quando começou a glorificação.
........A vaca havia acordado. Começava também a sentir suas dores. Muito piores. Sem as pernas e com as costelas para fora, ela mugiu terrivelmente. Disso me lembro muito, muito bem. Rangeu como um disco arranhando devagar. Se engasgou e tentou de novo.
........No seu primeiro movimento senti um osso quebrado raspar minha pele. Eu estava preso, nem a cabeça podia mover. Ela podia. E queria sair dali. Aquele lugar lhe causava muita dor. Ela tinha que sair rápido. Passou a se chacoalhar. A coluna ainda estava inteira. Mugia e tremia loucamente. O carro balançava. Eu comecei a gritar quando senti suas tripas quentes cobrirem minhas pernas. Calafrios ainda me arrepiam quando lembro daquela sensação.
........A vaca se chacoalhou enquanto eu estava preso. Suas costelas encontraram meu peito, seus tocos de pernas as minhas coxas. Os cacos de vidro estavam entre nós, mas isso foi o de menos.
........Seu couro rasgava-se no que restava do pára-brisa e ela gritava. Urrava e se mexia. E me cortava com seus ossos quebrados. E eu gritei e me engasguei com seu sangue. Eu tinha vidro encravado desde a testa até o pescoço. Meu sangue devia estar se misturando ao dela. E ela lutava desesperadamente para sair.
........Ouvi dizerem depois que meu rosto ficou desfigurado, mas isso não é nada.
........Os médicos vêm me ver de vez em quando. Vinham com mais freqüência, mas eles sabem que minha situação é estável.
........As enfermeiras contam também que quando os bombeiros chegaram ficaram desesperados pois achavam que minha barriga estava aberta e minhas tripas estavam caídas pelo acelerador. Estava tudo misturado com vidro, então ficaram mais apavorados ainda.
........Mas no final não foi assim. Nada disso. Minha barriga estava apenas furada e as pernas ainda funcionavam. Eu não tenho certeza, mas comentaram isso quando me internaram aqui.
........Estou certo que já vou melhorar.
........Percebi que os médicos estão vindo menos. Mas não tem importância. Que acabe logo. Quando eu acordar ainda tenho que visitar minha mãe.


11 de dezembro de 2008