domingo, 14 de dezembro de 2008

Na praça

Na praça

..........Outro dia observei um acontecimento curioso, porém insignificante. Digo isso pois quando presenciei o que aquele homem fazia, seus motivos e gestos me prenderam o olhar e naqueles dois minutos, talvez menos, em que havia uma ação anormal na praça Santos Andrade, nenhum pensamento caminhava em minha cabeça. Havia apenas os sentidos, e meu corpo estava imerso numa atmosfera urbana às nove e tanto da noite.
..........Com tudo isso, posso afirmar que o fato não tem mais valor. Passada aquela imersão sentimental, vários juízos se fizeram e as conversas dos estudantes que passavam para entrar no prédio da universidade me vinham e eram desagradáveis. Não queria entender as linguagens, apenas fazer parte daquele mundo que me circundava. O velho foi embora e novamente eu estava distante das coisas por um metro de razão.
..........Do outro lado da praça avistei o frontão grego da faculdade. Precisava matar uns quinze minutos, então comprei um pastel ensebado das quatro da tarde e sentei no último degrau da larga escadaria.
..........Dali podia ver muita coisa apesar de não ser tão alto. Apesar também de ter que ficar limpando a graxa do bigode.
..........Entre uma mordida e mais uma, ouvi alguém tocando o orelhão lá embaixo. Era um homem muito magro com roupas meio velhas. Com sua muleta de metal deu quatro pancadas violentas de dentro da tele-orelha pública.
..........- Nhááá! M-merda!
..........Ainda resmungou outras palavras de efeito calmante.
..........Percebi que ele tinha dificuldade em se mover. Não só andar, de tudo.
..........Deu um passo difícil para trás e, recebendo um pouco da luz amarela dos postes antigos, começou a arrumar a muleta. Era daquelas com um bracelete dobradiço que envolve o bíceps. Estava travado prum lado qualquer que não devia. Aproveitando que estava ali e não servia para o que havia sido projetado, o homem espancou novamente o telefone até liberar o bracelete.
..........Na outra mão segurava uma bolsa e isso dificultava a inserção do braço na muleta. Mas foi.
..........Lá dentro, o braço auxiliou tropegamente as pernas mal formadas. Saiu da orelha e com quatro passos muito complicados ficou na frente do outro dos três telefones que costumam andar juntos. Cuidadosamente apoiou a bolsa de pé ao lado da perna e foi tirar a geringonça do gancho. ..........A bolsa caiu para o lado.
..........Sacou o cartão telefônico com a destreza que ainda tinha. Era realmente o que restava, pois enfiar aquela lâmina naquela fenda àquela escuridão auricular não foi das coisas mais cotidianas.
..........- Ah! Jjjii-rrc. Pu(i)..tá.
..........Deve ter falado ainda alguma coisa do caralho.
..........Mas também foi. E funcionava.
..........Percebi então que ao meu lado estava o segurança do prédio, olhando tudo muito sério. Várias pessoas das barraquinhas da praça também pararam para assistir. Os que esperavam o ônibus só precisaram virar o pescoço.
..........Nada teria sido daquele jeito se todos aqueles olhares não tivessem injetado suas indignações moralistas, suas surpresas infantis, suas risadas contidas.
..........Acabou ali, com o fone de volta no gancho, a mensagem transmitida, tudo em ordem.
..........O relógio marcava horas a mais.


17 de outubro de 2008